terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Traga a vasilha


Quando ainda morava com o pai do meu filho, nos fins de semana passava pela frente da nossa casa o Tio do sorvete. Ele andava sozinho com um megafone, empurrando um carrinho neolítico dizendo pausadamente: "Sorvete gostoso. SORVETE SA-BO-RO-SO. Traga a vasilha. TRA-GA A VA-SI-LHA. "

Nunca vi um marketing tão poderoso. O tio fazia com que as pessoas fossem realmente atrás do sorvete às seis da manhã de cara amassada com vasilhame numa mão e dinheiro na outra, para descobrir o preço só na hora de pôr as bolas no recipiente. Sendo totalmente parcial e influenciada, faço uma análise radical sobre o que tem sido O problema da minha vida e, posso apontar faltas graves como:

1) não ter quem me dissesse a importância de levar a vasilha;

OU ações precipitadas como:

2) sair correndo quando o sujeitinho soletrava "SA-BO-RO-SO" e só descobrir que tinha de levar o tupperware quando chegava na frente do sorveteiro. E daí até que eu voltasse em casa pra pegá-la ou o sorvete teria acabado ou o tio não pôde esperar e beeeeeeijos;

Desde então, "traga a vasilha" soa como um imperativo de garantias na vida. Acho que trata sobre se precaver, sobre saber aproveitar,sobre escutar as instruções calmamente e até o fim, e sobre custo-benefício.Toda uma sabedoria das bolas de sorvete que pode ser aplicada a distintos campos tais como economia,publicidade,direito trabalhista, auto-ajuda e até mesmo a artes prosaicas como a naïf. Acho digno.
Imagino também o aparecimento de, para pessoas como eu, um Tio da vasilha que anunciasse: "Vasilha bonita. VASILHA ES-PLEN-DO-RO-SA. Traga o sorvete.TRA-GA O SOR-VE-TE." Embora acredite, pela natureza da Vasilha, que este simpático e mais judeuzinho espécime de Tio jamais solicitaria pelo sorvete; ele estaria lá na sombra do primeiro, com sua voz baixinha e sorrisinho oferecendo alternativa aos precipitados sem frascos. Eu sempre suspeitei que conteúdo fosse superestimado. Inclusive, porque a forma meio que manda não só no conteúdo como na sua interpretação. Para certos pós modernos " que conteúdo ,que nada"! só há forma. Mas deixem eles lá, por agora. Como assim as artes,a moda e a literatura falam de outra coisa que não a forma? Ah,Literatura não?Pra mim é tudo emporcalhada ou esplendorosamente um exercício de forma imaginada. E se você, assim como eu, acredita que a política, as ciências duras,o marketing e a psicologia tentam subestimar e pôr a forma no seu devido lugar, ao mesmo tempo que se utiliza soterrateira e descaradamente dela, meu bem, então deixemos todo o resto da humanidade gritar impropérios à estética e lamber os dedos e cotovelos enquanto tudo derrete . A gente faz malabares com Tupperware e o tio judeuzinho sempre estará lá na sombra, rindo conosco.

2 comentários:

Anônimo disse...

No final, it's all about the vasilha, darling.
Vim retribuir a visita e que surpresa boa.
beijo e voltarei.
Roberta

Ricardo Siqueira disse...

Hahaha acho incrivel como você consegue se desviar COMPLETAMENTE do assunto inicial e ainda costurar um retorno no final! Brilhante!