quinta-feira, 20 de maio de 2010

Por uma edição menos cretina, Deus

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Estava eu tranquilamente lendo uns materiais da faculdade num cineminha muito charme e aconchego, que é vinculado ao Circuito Sala de Arte e fica num campus da UFBa. Fim de tarde, e estava especialmente mais legal: um monte de gente lendo, calada e sorrindo, se movendo muito elegantemente. Uma música mui agradável, de Madeleine Peiroux, tocava e só conseguia ouvir alguns talheres batendo nos pratinhos de sobremesa. Me aparece do outro lado do vidro fumê um rapaz. Ele era magro,loiro natural, usava óculos e roupas muito básicas de estudante que não se importa muto com as roupas, mas nem por isso menos bonitas e corte de cabelo meio nerd. Andava com um pé quase na frente do outro, bem retilíneo mesmo, fiquei imaginando enquanto o olhava, o chão e todo o espaço se desfazendo ao redor dele e apenas uma linha fininha como um meio fio sobrando como única passarela possível. Ele cumpriu todo o caminho sem cair no buraco negro, sem sair da linha que eu traçara e ele ignorava, meu Deus, que beleza, ele podia ter sido ginasta na infância (alguém controle meu random). O rapaz entra no cinema e aparentemente por acaso encontra uma amiga querida e,pra minha surpresa, age tão gentleman, mas tão cortês, de um jeito antigo e tão, mas tão elegante, que tive de dar um tapa no homúnculo da minha consciência para ele parar de dar comandos ridículos. Vou aceitar esses conselhos random, não.
Vamos chamar o rapaz de Ben. Ben comprou uma torta alemã e sentou de frente pra garota; posso dizer que quanto mais eu o observava, mais eu era surpreendida por tamanho witticism como eu só vi antes em termos imaginários. Sua postura, suas mesuras, seu jeito calmo de comer a torta e olhar para a garota, a maneira como se inclinava nas direções certas até o ponto certo e como fazia o mesmo com relação ao sorriso, sim, sim, muito cavalheiresco. Pelos lábios, eu podia supor suas falas, o ritmo e-xa-to delas.Teria Ben feito Escola de Boas maneiras para homens da nobreza? Teria Ben bengalas de madeira nobre em casa, onde treinava em frente ao espelho o dia de sua posse como Duque de uma ilhota, num certo pequeno reino em terras temperadas?Quer dizer, que estaria fazendo Ben de sua vida que não, sendo condecorado por honra e mérito e ganhando cargo de admiração pública, mas sim numa faculdade pública de ciências humanas ? Onde existiriam outros Ben se desperdiçando nesse Brasil de meu deus? Tem gente que podia ser pago só por sua qualidade de gente olhável. Ben tem função social no Brasil, alguém precisa pagar a ele para isso.
Se o modo como as coisas funcionam no universo fossem menos complexas e mais dignas, minha historieta real de flash de admiração terminaria ali. Mas não, Deus parece fazer questão de me mostrar o backstage das minhas ilusões. Minha cara de susto e desencanto deve ser bastante apreciada nas casas de divertimento do Paraíso. Eu, não satisfeita com suficiente predicados, resolvi chegar mais perto pra ouvir o áudio da conversa. Juro que podia esperar qualquer coisa, como descobrir que o livro em cima da bancada do café era Manifesto do Partido Comunista ou Na margem do Rio Pietra Sentei e chorei (aka Paulo Coelho), mas o aconticido foi de uma falta de necessidade. Tipo, o rapaz loiro, elegante, clean, nerd e talz tinha voz de travesti. Você estava preparado para essa informação? Eu também não. Rolou um atordoamento tão terrível que tentei esquecer tudo e voltar ao meu Os temas de movimento de Rudolph Laban. Mas, poxa, que tipo de mentalidade cruel seria essa? A vida não pode ser só bonita? Tem de vir algo ridicularizá-la, esfregando a data de validade vencida de sua maquiagem? E esse mesmo algo arremata dizendo (enquanto lança perdigotos) quão pífia é nossa duração de vento e que se as rochas pudessem ririam na nossa cara, que os nossos deslumbramentos e civilização e cultura são ridículos e vão virar pó. Mas voz de travesti naquele rapaz é coisa de uma Mente Maligna com iniciais maiúsculas. Minhas fugazes memórias de Ben foram pra sempre manchadas. Beleza, voltei ao livro. Mas como a tarde era de grandes eventos, abre a porta do café do charmoso cineminha, uma sósia de Maria Callas na fase exuberante. Pense na mulher de 40´s mais linda e poderosa que você conseguir e não, não será ela ainda. Sentou na minha frente e abriu o livro "Biografia de Marco Polo". Como eu não estava preparada para a segunda decepção do dia, pus meu livro na bolsa, passei meu batom e saí. Antes que pudesse ser surpreendida por uma falta de dentes da frente ou pela voz de Joelma do Calypso, levei correndo minha bela imagem imaculada comigo. Sempre achei esse negócio de rir por último coisa de estraga prazeres.

5 comentários:

Ricardo Siqueira disse...

Cara, LINDA a descrição que tu fez. Tão linda que acho até que foi o monstrinho da edição que digitou o final da história quando você foi buscar mais café.

Mi.arcanjo disse...

Estava viajando nas suas palavras, até você em sua descrição, roubar-me o encantamento pela imagem do moço, srsrrs...surpreendente.

egosatira disse...

"backstage das ilusões", boa!
randon, conheço "uns Bens" jogados pelos museus e centro culturais de belo horizonte. Uns gays, outros chatos,mas nenhum tinha voz de travesti. o problema tá no backstage,definitivamente.

Ricardo Siqueira disse...

Repito pra vc o que me disseram hoje. Você escreve tão bem que dá até dó que escreva tão raramente

Anônimo disse...

que-dê vc?
se é que posso perguntar...